quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

"Ele está no meio de nós" de Dom Isnard dará lugar a "E com o teu espírito" dos Apóstolos

Por que "E com o teu espírito" está correto
por Frei Austin J. Milner, OP

Talvez uma das mudanças mais difíceis com a qual as pessoas deverão se confrontar quando a nova tradução do Missal Romano entrar em vigor será aquela do "Ele está no meio de nós" para "E com o teu espírito". As pessoas se acostumaram à primeira. Ela faz sentido [ndt.: And also with you no original, a versão portuguesa não faz sentido algum]. Por que mudá-la?

"E com o teu espírito" é a tradução literal do "Et cum spiritu tuo", que por seu turno é a tradução literal do grego. Esta frase, seja em grego ou em latim, era bastante estranha para o mundo antigo. Ela aparece somente nos escritos cristãos. Ela já se encontra nas saudações finais de algumas Epístolas Paulinas: "A graça de nosso Senhor Jesus Cristo esteja com vosso espírito, irmãos. Amém" (Gal 6,18; cf. Fl 4,23; Fil 25); "O Senhor esteja com o teu espírito. A graça esteja contigo" (2 Tim 4,22).

Pode ser que aqui São Paulo esteja ecoando uma fórmula litúrgica que já fosse familiar aos destinatários de suas cartas, mas não temos como ter certeza disto. A obra conhecida como "Tradição Apostólica", às vezes atribuída a Hipólito, numa passagem que data do terceiro ou início do quarto século, mostra que o uso litúrgico da passagem está àquela altura bem estabelecido.

Antes da oração de ação de graças sobre o pão e o vinho, o bispo saúda a assembleia com as palavras "O Senhor esteja convosco" e todos respondem "E com o teu espírito". A mesma saudação acompanha o ósculo dado pelo bispo a cada um dos recém-batizados quando ele lhes impõe as mãos e marca suas frontes com o crisma.

Estamos lidando, portanto, com uma saudação litúrgica muito antiga usada apenas pelos cristãos. Nos tempos antigos ela foi traduzida não apenas para o latim mas também para as línguas siríaca, armênia, georgiana, eslavônica e árabe. O Livro de Oração Comum anglicano e muitas liturgias protestantes preservam-na em sua tradução literal. Quando, nos anos60, a Liturgia Romana estava sendo traduzida para as línguas europeias modernas, Itália, França, Espanha e Alemanha mantiveram a tradução literal. Somente os responsáveis pela tradução inglesa decidiram abandonar esta antiga forma cristã de saudação [ndt.: a versão portuguesa sequer é uma tradução; é uma criação de Dom Isnard e cia.]. Eles argumentaram que ela derivou-se de uma forma semítica que era o equivalente a "e contigo também". Estavam certos? A frase significa algo mais? Mas se significa algo mais, o que significa afinal?

Comecemos por perguntar o que São Paulo pretendeu dizer quando usou a frase. Sobre este tema, um trabalho excepcional tem sido realizado por exegetas do Novo Testamento que podem nos ajudar a compreender a fórmula litúrgica.

Antes de mais nada, devemos perguntar se São Paulo está se referindo ao Espírito Santo ou ao espírito humano. E à primeira vista, parece que ele não pode estar se referindo ao Espírito Santo porque ele fala "teu espírito", e o Espírito Santo não pertence a qualquer ser humano ou grupo de seres humanos. Logo, ele deve estar se referindo ao espírito humano. Paulo, às vezes, fala do ser humano como composto de corpo, alma e espírito, mas como os mestres de seu tempo, ele também tende a usar "espírito" e "alma" como termos intercambiáveis. "Espírito" pode significar a pessoa inteira considerada como um ser que pensa e sente. Assim "com o teu espírito" poderia bem simplesmente ser um modo de dizer "contigo". Certamente Paulo aqui não tem a intenção de falar do espírito ou alma humanos como distintos do corpo.

A maioria das Epístolas Paulinas terminam com o desejo de que a graça de Cristo possa estar com aqueles para os quais ele escreveu: "A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo esteja com todos vós" (2 Cor 13,13) ou "A graça do Senhor Jesus esteja convosco" (1Cor 16,23; 1 Tes 5,28; 2 Tes 3,18) ou simplesmente "A Graça esteja convosco" (Col 4,18; 1 Tim 6,21; Tt 3,15; cf. Ef 6,13). Por que, então, nas quatro epístolas supramencionadas, ele expressa o desejo de que a graça de Cristo esteja com o espírito deles? O que ele acrescenta a sua saudação, se é que acrescenta algo?

Parece que São Paulo sempre considera o espírito humano como um espírito dado por Deus. Para o cristão isto é uma novidade, o qual, embora uma parte criada da natureza do cristão, é recebido de Deus, posto no crente por Deus: "Porque vós não recebestes um espírito de escravidão para recair no medo, mas recebestes o espírito de filiação. Quando clamamos 'Abba! Pai!' é o próprio Espírito que dá testemunho com o nosso espírito de que somos filhos de Deus" (Rm 8, 15-16; cf. 1 Tes 5,23). Fundamentalmente, para São Paulo há um único Espírito de Deus conferido separadamente aos indivíduos (cf. Rm 1,9; 2 Cor 11,4). Parece então que nos quatro casos em que São Paulo muda o "convosco" de sua saudação final para "com o teu espírito" ele quer fazer duas coisas: quer recordar a seus leitores da especial participação humana no Espírito de Deus que eles receberam, e porque ele fala de "vosso (plural) espírito", ele parece referir-se a algo que existe, ou que tenha sido recebido em comum por toda a igreja à qual ele está escrevendo.

Em vários lugares na Bíblia, entretanto, a palavra "espírito" é usada para aludir aos dons ou efeitos do Espírito Santo como em Isaías 11,2: "E o Espírito do SENHOR repousará sobre ele, o espírito de sabedoria e entendimento, o espírito de conselho e fortaleza, o espírito de conhecimento e do temor do SENHOR ". São Paulo também usa a palavra neste sentido quando ele diz, por exemplo, "porque se eu oro em línguas, meu espírito ora, mas minha mente fica sem fruto" (1 Cor 14,14), onde se faz uma clara distinção entre o espírito de quem ora numa língua estranha e sua mente, ou de novo quando ele diz: "E os espíritos dos profetas devem se submeter aos profetas" (1 Cor 14,32). São Justino Mártir (250 d.C) diz-nos que aqueles que creem em Cristo recebem dons, quando são batizados, cada um conforme for digno. "Um recebe o espírito de entendimento, outro de conselho, outro de fortaleza, outro de cura, outro de profecia, outro de ensino e outro de temor do Senhor" (Diálogo com Trifão, c39 [PG 6, 560]).

Nas orações de ordenação da Tradição Apostólica a Igreja reza para que o bispo receba "o espírito de liderança", para que o presbítero receba "o espírito de graça e de conselho do presbitério para que possa auxiliar e conduzir vosso povo com um coração puro" e para que o diácono receba "o espírito de graça e de zelo".

Este sentido combina bem com a resposta litúrgica "e com o teu espírito". Até o quarto século, a Oração Eucarística, e de fato as demais orações da liturgia, eram composições espontâneas, embora elas seguissem um dos vários modelos tradicionais. Tal composição espontânea estava relacionada ao dom de profecia. Um obra cristã do fim do primeiro século chama Doutrina dos Doze Apóstolos diz que, na Eucaristia, aos profetas se devia permitir que dessem graças o quanto desejassem. Portanto, quando o povo reunido respondia à bênção do presidente, eles oravam para que o Senhor estivesse com o carisma que ele recebera. Por volta do fim do quarto século, esta oração espontânea foi substituída pelo uso de orações escritas. Na Igreja de Antioquia da Síria, pregadores como São João Crisóstomo ou Teodoro de Mopsuéstia diziam que a palavra "espírito" na resposta referia-se ao carisma ou graça do sacerdócio que o bispo ou presbítero haviam recebido.

"Ao dizerem 'e com o teu espírito', eles não se referem a sua alma, mas à graça do Espírito Santo pelo qual seu povo acredita que ele foi chamado ao sacerdócio", diz Teodoro (Homilias Batismais, 15, 37). Na liturgia siríaca do quinto século, a saudação é traduzida "contigo e com o teu espírito". Traduzindo assim este povo semita, que fala uma língua muito próxima daquela falada por nosso Senhor e por seus discípulos, torna-se claro que eles pensavam que ela significa mais que um simples "e contigo também". No fim do século V, encontramos a seguinte explicação em algumas homilias atribuídas a Narsi de Nisibis: "O povo responde ao sacerdote com amor, dizendo: 'Contigo, padre, e com aquele teu espírito sacerdotal'. Eles chamam 'espírito' não a alma do sacerdote, mas o espírito que o sacerdote recebeu pela imposição das mãos. Pela imposição das mãos, o sacerdote recebe o poder do Espírito, de modo que ele é capaz de realizar os divinos mistérios. Aquela graça o povo chama o espírito do sacerdote e eles rezam para que ele [o sacerdote] possa alcançar a paz com ele e ele [o espírito] com o sacerdote". (Homilia de Exposição dos Mistérios 17 A).

No sétimo ou oitavo séculos, outro escritor siríaco, Abraham bar Lipheh, comentando sobre a saudação de paz do bispo, dá a mesma interpretação: "E em seguida o povo responde ao sacerdote: 'a ti também esteja a paz com o espírito do sacerdócio que tu recebeste'" (Interpretação dos Ofícios).

Alguns hoje objetam que tal interpretação da resposta põe muita ênfase no sacerdócio do que preside em detrimento do sacerdócio de toda a assembleia. Mas esta certamente não era a intenção de Teodoro de Mopsuéstia ou de São João Crisóstomo.

O primeiro diz na homilia já citada: "É neste sentido que a frase 'E com o teu espírito' é dirigida ao sacerdote pela congregação segundo às determinações encontradas na Igreja desde o princípio. A razão para que seja assim é que, quando a conduta do sacerdote é digna, é um ganho para o inteiro corpo da Igreja, e quando a conduta do sacerdote é indigna, é uma perda para todos. Todos eles rezam para que a graça do Espírito Santo possa lhe ser concedida em paz, a fim de que ele se esforce para realizar seu serviço a todos devidamente".

E São João Crisóstomo na homilia sobre Pentecostes diz: "Se não fosse o Espírito Santo não haveria pastores ou mestres na Igreja, porque tais coisas também vem através do Espírito. Como diz São Paulo: 'no qual [rebanho], o Espírito Santo vos constituiu pastores e bispos' (At 20,28). Não vedes que isto também acontece por meio do Espírito? Porque se o Espírito Santo não estivesse no pai comum e mestre tão logo ele entra no santuário e vos dá a todos a paz, vós todos não lhe teríeis respondido: 'e com o teu espírito'. Por esta razão, não apenas quando ele ingressa no santuário e quando ele vos saúda e reza por vós, vós lhe dais esta resposta, mas quando ele se aproxima da mesa sagrada e quando começa a oferecer o tremendo sacrifício - os inciados entenderão o que eu digo - ele não toca as oblatas antes de implorar-vos a graça do Senhor e vós bradais em resposta a ele: 'e com o teu espírito'. Com esta resposta vós sois recordados de que aquele que está ali não faz nada, e que o direito de oferecer os dons não é uma obra da natureza humana, mas que o sacrifício místico é realizado pela graça do Espírito Santo e paira sobre todos. Porque aquele que ali está é um homem, é Deus quem opera através dele. Não vos fixeis na natureza daquele que vedes, mas compreendei a graça que é 9invisível. Nada do que é humano tem lugar neste santuário sagrado. Se o Espírito não estivesse presente, não haveria uma Igreja assistindo, mas se a Igreja permanece ali, é claro que o Espírito está presente" (PG 50, 458-459).

A interpretação siríaca do "E com o teu espírito" não é de forma alguma a única encontrada nos vários comentaristas sobre a liturgia, orientais e ocidentais. Mas o fato de que, desde o fim do quarto século, esta resposta era usada somente àqueles em ordens maiores [ndt.: sacerdotes] confirma que era uma compreensão muito disseminada.

Para concluir, quando voltamos a dizer "E com o teu espírito" em vez do banal "E contigo também" [ndt.: o que dizer do "Ele está no meio de nós"?], nós deveríamos entender que não estamos nos referindo à alma do sacerdote como distinta de sua existência corporal. Estamos nos referindo ao tremendo mistério de nossa redenção e cura comuns através do Espírito Santo, o qual Jesus ressuscitado enviou a nossos corações. Em particular, estamos nos referindo à especial graça do Espírito pelo qual homens são feitos sacerdotes, rezando para que aquela graça continue a capacitá-los a realizar todas as suas funções em santidade no serviço do povo sacerdotal de Deus, e recordando-nos que, como São João Crisóstomo o coloca, o ministro no altar "não faz nada, e que o direito de oferecer os dons não é uma obra da natureza humana, mas que o sacrifício místico é realizado pela graça do Espírito Santo e paira sobre todos".

Frei Milner morreu em dezembro, poucos meses depois de escrever este artigo. É publicado com a amável permissão da Ordem Dominicana.

NOTA DA CNBB SOBRE ÉTICA E PROGRAMAS DE TV

 
Têm chegado à CNBB diversos pedidos de uma manifestação a respeito do baixo nível moral que se verifica em alguns programas das emissoras de televisão, particularmente naqueles denominados Reality Shows, que têm o lucro como seu principal objetivo.

Nós, bispos do Conselho Episcopal Pastoral (CONSEP), reunidos em Brasília, de 15 a 17 de fevereiro de 2011, compreendendo a gravidade do problema e em atenção a esses pedidos, acolhendo o clamor de pessoas, famílias e organizações, vimos nos manifestar a respeito.

Destacamos primeiramente o papel desempenhado pela TV em nosso País e os importantes serviços por ela prestados à Sociedade. Nesse sentido, muitos programas têm sido objeto de reconhecimento explícito por parte da Igreja com a concessão do Prêmio Clara de Assis para a Televisão, atribuído anualmente.

Lamentamos, entretanto, que esses serviços, prestados com apurada qualidade técnica e inegável valor cultural e moral, sejam ofuscados por alguns programas, entre os quais os chamados reality shows, que atentam contra a dignidade de pessoa humana, tanto de seus participantes, fascinados por um prêmio em dinheiro ou por fugaz celebridade, quanto do público receptor que é a família brasileira. 

Cônscios de nossa missão e responsabilidade evangelizadoras, exortamos a todos no sentido de se buscar um esforço comum pela superação desse mal na sociedade, sempre no respeito à legítima liberdade de expressão, que não assegura a ninguém o direito de agressão impune aos valores morais que sustentam a Sociedade.

Dirigimo-nos, antes de tudo, às emissoras de televisão, sugerindo-lhes uma reflexão mais profunda sobre seu papel e seus limites, na vida social, tendo por parâmetro o sentido da concessão que lhes é dada pelo Estado.

Ao Ministério Público pedimos uma atenção mais acurada no acompanhamento e adequadas providências em relação à programação televisiva, identificando os evidentes malefícios que ela traz em desrespeito aos princípios basilares da Constituição Federal (Art. 1º, II e III). 

Aos pais, mães e educadores, atentos a sua responsabilidade na formação moral dos filhos e alunos, sugerimos que busquem através do diálogo formar neles o senso crítico indispensável e capaz de protegê-los contra essa exploração abusiva e imoral.

Por fim, dirigimo-nos também aos anunciantes e agentes publicitários, alertando-os sobre o significado da associação de suas marcas a esse processo de degradação dos valores da sociedade. 

Rogamos a Deus, pela intercessão de Nossa Senhora Aparecida, luz e proteção a todos os profissionais e empresários da comunicação, para que, usando esses maravilhosos meios, possamos juntos construir uma sociedade mais justa e humana.
 
Brasília, 17 de fevereiro de 2011


Dom Geraldo Lyrio Rocha

Arcebispo de Mariana
Presidente da CNBB

Dom Luiz Soares Vieira
Arcebispo de Manaus
Vice-Presidente da CNBB

Dom Dimas Lara BarbosaBispo Auxiliar do Rio de Janeiro
Secretário Geral da CNBB