segunda-feira, 12 de março de 2012

HOMILIA DA SEXTA FEIRA SANTA



HOMILIA DA SEXTA FEIRA SANTA

15 de abril de 1949

CATEDRAL DO SANTISSIMO SALVADOR,
CAMPOS DOS GOYTACAZES


PASSIO DOMINI NOSTRI IESU CHRISTI

    Terminada a Ceia memorável, instituída a Santíssima Eucaristia, legado de amor e perdão, dadas as ações de graças, retirou-Se Jesus com seus discípulos do Cenáculo, e deixou Jerusalém por aquela porta, ali ao sudeste, junto à piscina de Siloé, e tomou rumo norte, ao longo da torrente do Cedrão, para atravessá-Ia já à altura do Templo, em frente ao pórtico de Saio mão, muda testemunha de muitos dos seus milagres e profundos ensinamentos.
Jesus deixava a cidade num adeus eterno ao passado. Chegara a sua hora, prevista nos perenes desígnios divinos, que selaria para todo o sempre a sorte da Humanidade. Desde a primeira desobediência, gemia o gênero humano sob o jugo feroz de Satanás, e suspirava pelo Redentor que sacudisse domínio tão cruel e infamante.
Ei-lo presente.
    Jesus vai entender-Se com o Pai Celeste sobre o resgate do Homem. Esta foi a razão de sua vinda, este o fim de sua doutrina, o termo de sua obra. Tudo o mais preparava este momento extremo que fixaria, nos anais da Eternidade, o início de um mundo novo, de uma ordem nova, de uma geração nova, a geração dos filhos de Deus. «Dedít eis potestatemfilios Dei fierl» (Jo. 1, 12).
    Faz-se o ajuste das contas entre Deus e o Homem, a Justiça divina a reclamar a reparação da ordem violada pela rebeldia humana. Confronto desigual e inadequado, pois que o homem tornou-se incapaz de alçar-se do abismo em que sua culpa voluntária o havia projetado. Sua sorte estava decidida: condenação sem esperança de soerguimen-to.
    É então que Se interpõe o Filho Unigênito de Deus, mediador pacífico, hóstia sem mancha, vítima aceite do Pai Celeste, ao mesmo tempo que é representante legítimo do homem, cuja natureza assumira, e do qual se fizera irmão, consubstancial, em tudo semelhante, menos no pecado. Vai Ele tratar de nosso resgate.
    É sabido que bastaria um seu desejo, para cobrir larga e excessivamente a distância infinita aberta entre o Céu e a Terra. A grosseirões ato lados na matéria, percebendo só muito a custo as realidades puramente espirituais, uma tal Redenção não nos falaria aos sentidos, não nos daria a apalpar a hediondez e enormidade do pecado. E como Deus nada faz pela metade, a Redenção de Jesus Cristo foi completa. Atendeu também à condição mesquinha de nossa natureza. O Filho do Homem suportou na sua Paixão a série de abjeções que vai desde as de ordem física - os escarros e os açoites - até as que ferem o mais íntimo da consciência - a desnudez e o abandono.
    A Santa Igreja, aos nos propor à meditação a Paixão Sacrossanta do Divino Salvador, colima excitar em nós sentimentos de vergonha e detestação de nossos pecados, consciência da grandeza desse mal - o único que merece realmente esse nome - penitência e propósitos de vida numa existência ao serviço dAquele que deu sua vida por nós. É o que pretendemos nesta modesta homilia, e o que pedimos a Nossa Senhora nos conceda ao percorrer, em largos traços, o caminho doloroso seguido pelo nosso Bom Jesus, do Getsêmani ao Calvário.

PASSIO DOMINI NOSTRI IESU CHRISTI

    Já era noite, quando Jesus deu entrada no aprazível Jardim das Oliveiras, propriedade de um dos seus discípulos, provavelmente São Marcos, sempre à disposição do Mestre, que ali habitualmente vinha passar noites em oração.
    Desta vez, chegava Jesus com a alma possuída deprofunda melancolia. Tomou consigo aos três apóstolos prediletos, Pedro, Tiago e João, e avançou mais dentro no horto. Amargurava-Lhe a alma a visão das iniqüidades dos homens, desde o fratricídio do justo Abel até os últimos nefandos delitos que encerrariam os tempos. Amargurava- Lhe, outrossim, o isolamento dos seus próprios amigos, o alheamento desses mesmos três privilegiados, que nada entendiam das trevas de sua alma.
    Entregue a Si mesmo, dobra-Se o Salvador à misériada natureza que assumira, à fraqueza da vontade pusilânime à iminência do castigo, e confia aos apóstolos sua angústia: «Minha alma está triste até a morte» (Mt. 26, 38). Mas eles não o entenderam. Tinham sono. Mostraram-se indiferentes. Jesus estava realmente só.
    Era sozinho que Ele deveria comparecer diante do Padre Eterno. pois tomou sobre si todas as nossas iniqüidades, «Peccatamultorum Ipse tulit» (Is. 53, 12). Desde o Eden, esperava a Justiça Divina reparação das injúrias acumuladas pela malícia humana na sucessão dos séculos. Há milênios, o sangue das vítimas corria inutilmente, pois não iria um sangue irracional satisfazer à Majestade de Deus. Eis agora a Vítima inocente, impoluta, sem comércio com os pecadores, capaz de atrair as complacências dos olhares divinos. Mas, para isso, era mister que Ela se apresentasse só. Novo Adão, seria a fonte da nova Humanidade dos Filhos de Deus.
    Por mais cruel que fosse, esta solidão abatia ao suave Mestre muito menos, infinitamente menos, do que a outra que Lhe tocava do lado do Pai Celeste, perante Quem surgia como estranho, pois representava a Humanidade pecadora. Pela primeira vez, sentiu Jesus o abandono do Eterno Padre. Gozando, por direito natural, as delícias da Visão beatífica. Nenhum sacrifício Lhe era fardo insuportável, porquanto a felicidade desta Visão lhe aligeirava todos os males. Neste momento, porém, por um desses mistérios que nos não é dado desvendar, Jesus aparece como que isolado de Deus Padre. Esta é a solidão que prostrou a sua natureza.
    Ao se afastar dos três prediletos, escolhidos para companheiros de sua oração, fraquejou e caiu de bruços em terra. Assim, na posição dos que rezam prostrados, continuou a oração de sua agonia.

* * *

    E começou a tremer, a encher-se de tédio, e foi tomado de profunda tristeza. «Coepitpavereettaedere et moestus esse» (Mc. 16, 33; Mt. 26, 37). O temor Lhe vinha da previsão da morte, dos sofrimentos, da cruz, do martírio. Conseqüência do pecado, é a morte capaz de causar grande temor. Aceitando-a como punição, a fim de reparar nossas desordens recebeu-a Jesus com toda a seqüela natural de um grande castigo. E como na terra é a mais terrível pena do pecado, quis Jesus sofrer na sua natureza humana, toda a violência dessa maldição que pesava sobre a Humanidade, e teve pavor: «Coepítpavere».
    Tremia convulsamente, como acontece as pessoas tomadas de pânico na expectativa de uma catástrofe iminente e pavorosa. E qual mais tremenda, mais ignominiosa, mais horrorosa, mais aterradora do que aquela que O aguardava a breves instantes? Qualquer pessoa morreria de terror, e Jesus não teria escapado, regra comum, se O não sustentasse a graça de Deus Onipotente.
    O pavor de Jesus foi acompanhado de tédio. Só, abandonado de todos os discípulos, mal correspondido pelos católicos que viveriam nos séculos vindouros, contemplando a tibieza dos bons, o desprezo dos maus. O desperdício que os homens fariam de seu Sangue derramado com tanto sacrifício, Sua Alma encheu-se de tédio, de torpor, de desânimo. Só Ele reconheceria a Majestade Divina ultrajada? Só Ele saberia amar? Não haverá entre os mortais quem tivesse uma parcela de generosidade, que sacrificasse um pouco de seu bem-estar, e Lhe fizesse ,a esmola de amá-IO também? - Eis as perguntas que a nós nos dirigia no Jardim das Oliveiras nosso, Mestre adorável.
    Aquele tédio, que inundou a alma tão sensível e tão amável do Salvador, foi fruto de nossas infidelidades, nossas grosserias, nosso amor próprio, nosso apego ao mundo e menosprezo das coisas celestiais. - Ao menos, a lembrança das angústias que oprimiram o coração de nosso bem amado Jesus desperte as fibras delicadas e adormecidas de nosso coração, e nos tire do entorpecimento, para uma vida virtuosa, cheia de amor e dedicação à causa de nosso Bem e Senhor.

* * *

O pavor e o tédio mergulharam a Jesus Cristo numa tristeza mortal. «Coepit pavere et taedere et moestus esse».
    E começou a agonizar. Começou a desagregação de seu organismo, mais moral do que física. É o fruto da tristeza. O tédio e a tristeza acarretam o arrasamento do mundo interior, que a virtude e a tenacidade haviam edificado.
    Nessas ocasiões, é necessária a oração, humilde e confiante confissão de nosso nada, a prece a oração à Bondade onipotente de Deus. E esta confissão humilde e verdadeira agrada os olhos divinos, pois é o reconhecimento do seu domínio soberano sobre todas as coisas. «Sine me Nihil potestis facere» (Jo, 15, 5). Ora, é nos momentos difíceis, quando as angústias nos assaltam a alma, que mais firmes devemos nos agarrar à oração. «Prolixius orabat» (Lc. 22, 43). Ainda que seja para atestar nossa cobardia e pedir que se afaste o cálice da amargura para nós preparado e que nos parece superior à nossa natureza. «Si possibile est, transeat a me calixiste» (Mt. 26, 39). E nada há nisso de mal, desde que nos coloquemos inteiramente ao sabor da vontade divina. «Verum tamen non mea voluntas sed tua fiat» (Le. 22, 92).
    Admirável oração de Jesus Cristo! Poucas vezes O reconhecemos mais perto de nós, mais nosso irmão! É um homem que teme, que se apavora, que se acobarda, que sente sua miséria como qualquer um de nós. Não fora esse Mestre Divino e não saberíamos como nos haver com Deus, nos momentos mais críticos de nossa vida. Agora, já o sabemos. Temos direito de temer a morte e o sacrifício, de nos apavorar, de nos enchermos de tristeza, que nada disso envolve imperfeição. É carregados desses sentimentos que nos apresentaremos ao trono de Deus, para pedir à Divina Majestade que se apiede de nós e que nos poupe de todos os males. «Transeat a me calixiste» Desde que esta seja sua Vontade Santíssima. «Verum tamen non mea Voluntas sed tua fíat», - Sim, porque acima de todos os nossos bens há de pairar a sua Santíssima Soberana Vontade, no devotamento de filhos que, esquecidos de si, colocam por sobre suas vidas e seus interesses, a glória e o beneplácito do Pai Celeste. «Si possibile est, transeat a me calixiste; verum tamen non mea voluntas sed tua fiat».

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    Admirável oração de Jesus! O cálice permaneceu, mas o desfalecimento, o temor, o desânimo desapareceram como por encanto. É animoso e forte que Ele convida o apóstolos para a luta. «Surgite, eamus» (Mt, 26, 46). Ah! compreendêssemos melhor o valor da oração! Tivessemos mais fé e menos confiança em nós mesmos! Participaríamos da energia que Jesus colheu na prece, e teríamos a fortaleza indispensável para conservar intacta nossa crença, em meio dos embates de todo gênero, com que a impiedade nos assalta e, infelizmente, com mais freqüência do que desejáramos, nos apanha imprevistos! Que o exemplo do Divino Mestre, prostrado só pela visão dos males que iria suportar, e agora com vigor capaz de atravessar toda a pavorosa Paixão de doze horas, com a tranqüilidade serena dos justos, sem uma palavra, sem um sinal, uma atitude de impaciência, que este exemplo se fixe em nossos corações, e nos faça atender sempre ao conselho dado aos Apóstolos: «Vigiai e rezai para que não entreis em tentação» (Mc. 14, 38).

PASSIO DOMINI NOSTRI IESU CHRISTI

   Mal terminara Jesus sua prece, é o Jardim das Oliveiras tomado de soldados romanos, guardas do Templo, não faltando, para maior vergonha do Sinédrio, sacerdotes em pessoa, desejosos de participar da façanha noturna e de dar cooperação também material a todos os episódios daquele crime infamante. Vinham equipados de armas, espadas e varapaus, tochas e lanternas, como à cata de uma quadrilha de malfeitores, cuja resistência se teme.
   Nada disso era necessário, como tudo isso não valeria coisa nenhuma. Descido à terra para remir os homens, decidido, desde o primeiro instante, ao mistério de Amor, não foi subjugado por força superior, que Jesus sofreu sua paixão e morreu na Cruz. Não. Libérrimo sempre nos seus atos, quer Ele firmar este ponto. A tanto, com uma só palavra, derribou aquela turba multa, adestrada nas diligências policiais, e só foi manietado quando Ele mesmo o permitiu.
   Não há amor, onde há violência. Ora, a oblação de Jesus Cristo foi a maior prova de seu amor; por isso, precisava ser livre. Entregou-se porque assim Lhe pareceu. «Oblatus est quia Ipse voluit» (Is. 53, 7). - Em retorno, nossa correspondência - que essa caridade está a pedir deve ser generosa, ampla, e atender aos reclamos do credor de nossos corações: o Sangue Preciosissimo de Jesus Cristo. Em Sanguis ad te clamat de cruce.

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   No meio daquela escolta militar, afasta-Se Jesus do seu Jardim querido, o Horto das Oliveiras, lugar predileto de seus entretenimentos com as ternuras do Pai Celeste. Já agora também a nós nos prende esse lugar santo. E dele não nos distanciamos, sem lhe volver um olhar derradeiro, a esse jardim, onde nosso bem-amado Jesus orou, agonizou e suou sangue por nós. Parece que ele também toma parte nas tristezas fúnebres desta noite fatal para seu povo. A pálida, crepuscularmente bela luz do plenilúnio pascal coa-se através da folhagem copiosa das oliveiras, e vai desenhar no chão curiosos arabescos. - Mas, eis que surgem ao nosso olhar, crescem, tomam vulto e enchem o cenário duas figuras humanas, dois homens que se aproximam, que se abraçam ternamente.
   - Seria o filho pródigo no regaço amoroso do perdão paterno?
   - Não. Aquele homem que se atira nos braços é a traição, é o crime, é a infâmia. É Judas, o discípulo apóstata que vendeu o Mestre por trinta miseráveis dinheiros. É Judas, essa pústula, que vem depositar a peçonha negra de seu coração avaro nas faces imaculadas de Jesus. É Judas que, na falta de meio vil quanto seu ato, avilta a manifestação universal do carinho e da amizade, para fazer dela o sinal da traição ao melhor dos Mestres, ao mais meigo e fiel dos amigos.
   E Jesus o recebe, o acolhe junto ao seu peito, permite seu ósculo traidor.- «Amice, ad quid venistí» (Mt. 26, 50)? - «Amigo, a que vieste?» - É ainda a palavra da redenção, que, no limiar da morte, atira um raio da sua graça que amoleça e vivifique aquele coração empedernido!

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   Oh! meu bom Jesus! Em todas as fases de tua vida há mostras extraordinárias de tua bondade, de tua longanimidade, de teu perdão. Mas, em todas, encontro uma réstia de luz que atenda à exigência de minha mente, ansiosa por uma explicação de todos os teus atos. Admiro-Te na doçura com que recebes a pecadora pública, cujas imundícies não temes maculem teus pés virginais. Mas, compreendo: mais do que o nardo precioso, trazia ela a pérola do amor arrependido, e o propósito que a fez a grande penitente da Igreja. Admiro-Te, quando, prontamente, desces à casa do publicano, agiota conhecido, sugador da miséria dos necessitados. Mas, compreendo, quando Zaqueu compensa quatro vezes mais às injustiças. Admiro-Te, quando deixas livre a mulher colhida em adultério. Mas, compreendo o rubor que a levou a não pecar mais. Admiro-Te na generosidade com que, do alto da Cruz, escancaras as portas do Paraíso ao ladrão que reconhece seus delitos. - Mas, ali no Jardim da tua agonia, estreitado ao peito do discípulo traidor, e chamando-o ainda de amigo, Jesus, triunfas de todo o meu orgulho, vences toda a minha altivez, prostras-me na confissão dos abismos insondáveis de tua bondade, de teu amor. Uma só coisa entendo: é que por sobre as inenarráveis obras de tua Onipotência, paira soberana a Misericórdia. És a Misericórdia. Aqui, mais do que no Calvário, compreendo que vieste à busca do pecador, de todo o pecador, ainda do mais endurecido; aprendo que, no momento mesmo em que ele consuma seu crime, ainda estás presente para chamá-lo à razão, à penitência, ao perdão. «Amíce, ad quid venísti?»
   Por maior asco que me cause essa figura hedionda do teu discípulo vilão, a tua imagem, Senhor, enche minha alma de confiança. E como espero de tua misericórdia o perdão, confio, na tua graça, a emenda.

PASSIO DOMINI NOSTRI IESU CHRISTI

   Está Jesus no palácio de Anás e Caifás. Sogro e genro habitam duas alas distintas da mesma morada. A vizinhança de convívio tornava mais íntima a colaboração nas empresas tortuosas, quantas urdiam os sumos sacerdotes daquela nação decrépita. Ambos concertaram a trama para a queda do justo. Anás, pontífice deposto, astuto e cínico, era na realidade, quem imperava no Conselho dos Anciães, Sacerdotes e Principais do povo. Caifás era mais figura de proa.
   Não foi menor afronta obrigarem Jesus a comparecer perante esse tribunal, em meio de indivíduos, onde a impiedade, a hipocrisia, a crueldade, o cinismo desvirtuavam todos os dons da inteligência e coração concedidos por Deus aos homens. Caifás preside ao tribunal de um Sinédrio faccioso, reunido à pressa, fora de tempo e lugar, na mais irregular de suas assembleias. Não importa. Caifás não era homem de escrúpulos. Saduceu, ímpio, não acreditando na imortalidade da alma, não lhe interessavam as questões religiosas a não ser nos termos em que satisfaziam à sua desmedida ambição. No caso, o que importava era saciar seu ódio contra quem vergastava publicamente os desmandos dos sacerdotes, abalando seu prestígio junto ao povo. O preciso era condenar Jesus à morte, salvando-se, porém, as exterioridades de uma sentença judicial, pronunciada à vista de provas comprobatórias do delito.
   Eram necessárias testemunhas. Os tiranos tiveram sempre a corte asquerosa dos bajuladores apostados a todas as baixezas. Eis que aparecem muitas testemunhas. Mas, falsas todas, não eram concordes seus depoimentos. Apesar de todo aparato, a farsa ameaçava terminar mal. Foi quando, em desespero de causa, entra o próprio pontífice em cena.
   Nada mais sagrado para os judeus do que a unidade e transcendência de Deus. Deus é um só e habita uma luz inacessível. Pavorosa blasfêmia, pois, atribuir-se alguém atributos divinos. Ora, sabia Caifás que Jesus, muitas vezes, de, modo. explícito, ou em translúcidas parábolas, na própria cidade de Jerusalém, Se inculcara como Filho Unigênito de Deus, um só com Ele, na identidade da natureza divina. Em semelhante fato, conta o sumo sacerdote encontrar saída ao seu embaraço. Levanta-se, solene, e pergunta:
   - «Conjuro-te, por Deus, que nos digas se és o Filho de Deus» (Mt. 26, 63)?
    Qualquer que fosse a resposta, contava obter Caifás seus intento. Se Jesus confirmasse sua prerrogativa de Filho de Deus, explodiria aquela assembleia de hipócritas em clamores de blasfêmia. Se Jesus, ao contrário declinasse o título, apontá-IO-ia o Pontifice como mentiroso sedutor dos povos, tantas tinham sido as afirmações claras do Salvador de que realmente era o Filho de Deus.
    Eis a intenção de Caifás. Essa e nenhuma outra. Pouco se lhe dava a verdade, ainda que dessa monta, e muito menos a real ou falsa culpabilidade do réu. - Não organizara ele, mais seu sogro Anás, aquela prisão a desoras, valendo-se do traidor? - Não consentira no complô armado para assassinar Lázaro, irmão de Maria e Marta, a fim de se desfazer de uma testemunha viva da dignidade excelsa de sua vítima? - Não zombaria sarcasticamente de Judas, quando, restituindo os trinta dinheiros atestava a inocência de seu Mestre? - Não. Naquele coração não havia lugar para sentimento nobre ou disposições para o bem. «Totus positus erat in maligno» (I Jo. 5, 19)!
    A resposta do Mestre veio densa daquela sabedoria que tantas vezes emudecera a astúcia dos escribas e fariseus versados nos meandros da sofística rabínica. «Se vos disser, não acreditareis. Se vos interrogar, não me respondereis nem libertareis- (Lc. 22, 67-68). Como se dissesse: hipócritas, compreendo vossas intenções, de maneira que todo este aparato é para dar aos ingênuos a persuasão de que fui condenado em julgamento regular.
    Era preciso, no entanto, terminar este episódio de sua Paixão. Como no Jardim das Oliveiras, coube a Jesus entregar-Se quando melhor lhe pareceu. Assim, agora, no momento oportuno, encerra Ele o debate, declarando sua natureza: «Vereis o filho do Homem sentado à direita de Deus» (Mc. 14, 62).
    Era a confissão esperada. Rasga o pontífice suas vestes num fingido gesto de horror ao ouvir o sacrilégio, e volta-se aos juízes: «Que vos parece? Ouvistes a blasfêmia» (Mt. 14, 64). - É réu de morte, responderam todos (Mt. 26, 66). A todo tempo dirá Caifás: Afinal foram os juizes que o condenaram.

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O cinismo revoltante dos Caifases é de todos os tempos. E é com ele que mais sofre a Igreja, Corpo Místico de Cristo. Homens sinuosos, fingem-se escrupulosos em coisas mínimas e carregam uma consciência profundamente adormecida no mal. Acobertam sob aparência de zelo a falta de amor a Cristo e às almas, e desmandam-se em censuras fáceis às coisas boas. Enchem a boca com expressões de lealdade e moral, e conspurcam os mais sagrados deveres de sua Fé que, ainda para escândalo dos fiéis professam. Católicos formalistas, de casquinha, são os Caifases que condenam a Jesus Cristo na sua Igreja, na pessoa dos fiéis, das almas simples, com gáudio dos incrédulos e ímpios.

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   No palácio do sumo sacerdote, deu-se uma cena horripilante.
   Após o julgamento, Jesus foi entregue à plebe, açulada pelos príncipes dos sacerdotes e anciãos do povo, que se serviram da ocasião para dar largas ao seu ódio na mais aviltante das crueldades.
   Aqueles covardes, que jamais ousaram tocar na pessoa do Divino Mestre, agora que o vêem preso e inerme, cevam a sua ferocidade poltrã, e desafogam seus instintos bestiais na vítima indefesa. Cospem na sua face adorável, vendam-Lhe os olhos, cobrem-no de bofetadas e perguntam com irrisão: «Profetiza, quem te bateu» (Mt. 26, 68)?
   Nada revolta mais o homem justo do que a prepotência do forte que se animaliza para oprimir os fracos. e é com sentimento de incontida cólera e indignação profunda que imaginamos aquela turba hedionda, olhos chispantes, dentuças à mostra, saliva grossa e fétida, naquele mister inglório de deprimir, desonrar e humilhar ao nosso bem amado Jesus.
   Pois, ainda que vos pareça estranho, nós é que formávamos aquela malta repugnante, bestializada e repelente, como todos os promotores de arruaças. Nossas eram as bofetadas, nossos os escarros, nossos os escárnios. E se à nossa sensibilidade e civilização repugna admiti-lo, fale-nos a Fé por boca de Santo Agostinho, que nossos pecados é que causaram todas as humilhações e sofrimentos do Senhor Jesus.
   Acaso não imitam a súcia zombeteira do dom profético de Cristo aqueles católicos que ignoram ou fingem ignorar a doutrina da Igreja, professam o mais aberto interconfessionalismo, apreciam as atitudes dúbias, as colaborações suspeitas, a exaltação da natureza, os meios humanos mais do que a eficácia da graça?
Oh! sim, que nos tempos confusos que atravessamos, o lugar onde aos homens mais apraz ver a Jesus Cristo é no palácio de Caifás, entregue aos baixos instintos do populacho; pois que nada melhor representaram aqueles desordeiros do que a desordem atualmente reinante um pouco por toda a parte no mundo de hoje.

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   Não foram, no entanto, os inimigos que, na casa dos pontífices propiciaram a Jesus a parte mais ácida naquele já tão imenso cálice de amarguras...
   Levado por uma simpatia natural mais do que pela graça, secundando seu temperamento e não propriamente as reflexões da Fé, não sem uma forte dose de curiosidade, Pedro seguia o Mestre de longe, a ver como iria terminar toda aquela tragédia, que começara no Jardim das Oliveiras, e na qual - pensava - em má hora procurara desempenhar um papel. Temerariamente confiando em suas forças, em seu entusiasmo e também no número não pequeno de comparsas, entre os quais passaria despercebido, no anonimato geral, Pedro aproximou-se da gente que, no pátio de Caifás, se aquecia ao fogo, ali aceso para afugentar o frio da noite.
   Pobre Pedro! Não foram precisas ameaças, prisões, soldados, coortes, exércitos. Bastou a bisbilhotice de uma mulher, uma mulherzinha, que não passava de uma serva, encarregada de abrir e fechar a porta aos transeuntes para destruir, como um castelo de cartas, todas as Juras de fidelidade, erguidas com tanta firmeza, quanta inconsciência pelo apóstolo pusilânime! - «Estavas também com Jesus de Nazarê» (Jo. 18, 17) - diz-lhe à queima-roupa a porteira do palácio. Surpreso com a pergunta, absolutamente imprevista, Pedro procura o meio termo, onde não está nem a virtude, nem o vício. O terreno da tibieza.
    - Não sei o que dizes; «não entendo o que dizes» (Mt. 26, 70). - Esperava, assim, o apóstolo safar-se do estorvo, sem negar sua qualidade de discípulo, nem afirmar uma amizade embaraçosa num ambiente hostil. E com isso julgou sossegar a consciência.
    Quantos fiéis não procedem de modo semelhante! Não servem para o bem, nem para o mal. Vivem para si, e pensam não comprometer a alma. Egoístas, não amam aDeus a não ser na medida em que - na opinião lá deles - o serviço divino lhes assegura a felicidade do além. Querem a paz do Céu, sem descuidar dos bens e tranquilidade terrenos. Evitam o pecado - ao menos assim pensam - mas, por uma obra de apostolado, não renunciam ao comodismo, nem desprezam os prazeres do mundo. Esquecem-se tais católicos das palavras candentes do Mestre: «Quem não é por mim, está contra mim» (Mt. 12, 30). Não é de braços cruzados que se segue a Jesus Cristo. Diante de sua Pessoa adorável, o homem ou ama apaixonadamente, e Lhe consagra a vida por inteiro, ou termina votando-Lhe aversão, porque não suportará a torrente de vida que d’Ele jorra, e é uma acusação perene à insensibilidade de sua alma. O caso de São Pedro ilustra este ensinamento. Julgou o apóstolo que o perigo tinha passado, e que poderia continuar gozando o calor da fogueira naquela companhia que o não desagradava tanto quanto devera, pois composta de indivíduos ou indiferentes ou inimigos de seu Divino Mestre. Apesar de todo o empenho por que ninguém o notasse, a curiosidade de outra mulherzinha, outra serva do palácio, veio novamente sobressaltá-lo. - «Realmente, este estava com ele» (Mt. 26, 71)! - notou a empregada. Uma afirmação simples, sem nada de mais grave.
    Pedro, porém, temendo os circunstantes, disse, e agora mais fundo. Perdeu o equilíbrio. Não teve a presença de espírito da primeira vez, e, na alternativa de confessar sua Fé, ou agradar os de redor, já sem forças na vontade combalida, pendeu resolutamente para o mal, e negou com juramento: «et iterum negavit cum iuramento quia non novi hominem» (Mt. 26, 72). Caiu de cheio no pecado, e não teve dúvida em agravá-I o com juramento.
    Pouco mais, e põe-se ele a jurar, a anatematizar, a protestar, reunindo todas as maneiras possíveis à sagacidade humana para persuadir aos companheiros que ele era deveras um deles, perverso como eles, injusto como eles, que, como eles, participava do crime dos que eram ou indiferentes ou cúmplices na morte de Jesus Cristo ... na morte de seu Divino, Amável e inefável Mestre, na morte daquele que o destinava para chefe de sua Igreja, na morte daquele que o distinguira sempre com mostras de especial confiança! «Egressus foras, flevit amare» (Mt. 26, 75). E saindo fora chorou copiosamente.
    Pobre Pedro! Eis o fruto do teu orgulho, de tua imprevidência, da confiança excessiva em tuas débeis forças! Valha-te este aviltamento, para depois, adestrado em tua própria experiência, saberes confirmar aos teus irmãos. «Tu ali quando conversus, confirma fratres tuos» (Lc. 22, 32).
* * *
    A queda de São Pedro se é amostra do que pode o homem entregue a si mesmo, é grave lição para os verdadeiros discípulos de Cristo que desejam fazer frutificar seu amor nas obras de apostolado.
    Comenta São Jerônimo o caminho tortuoso que leva ao pecado. A princípio, o desvio da virtude é real, mas quase imperceptível. A alma pode ainda enganar-se, e pensar que se mantém fiel ao amor divino. O primeiro passo, no entanto, já torna difícil uma volta ao fervor, e é quase sempre o prelúdio de faltas maiores, sempre mais rápidas do que a pessoa imagina.
    Não se expusera Pedro no meio daquela gente, que nunca devera ser sua companhia, e não viria a pecar. Amou o perigo, e o primeiro dos apóstolos tornou-se apóstata. Não há motivo por que os católicos freqüentem reuniões mundanas, especialmente quando nelas domina o pecado, a sensualidade. O grupo que se reunia em torno da fogueira, no átrio da casa de Anás e Caifás, não era composto das pessoas mais interessadas na condenação do Justo, pois não seguia o julgamento que se processava ali perto. Talvez parecesse gente menos má, e portanto, indiferente sua convivência.
    Puro engano! Gente mundana e gente cristã não têm terreno comum em que se encontrem e possam viver em paz. Eis que as maiores quedas se iniciam não ao contato dos já habituados à freqüencia do vício, mas à fascinação daqueles que se sentem bem na atmosfera propícia à vaidade, à sensualidade, ao orgulho.
    Há mais. Não foi apenas a companhia inconveniente a causa da negação de Pedro. Santo Agostinho culpa-o também de um amor natural pelo Divino Mestre, e de muita confiança nas próprias forças. Não refletiu antes de tomar sua resolução, e desprezou a advertência de Jesus Cristo no caminho do Jardim das Oliveiras, e a oração no mesmo Jardim. Por isso, experimentou as consequências de sua fraqueza e o poder dos afetos humanos desacompanhados da graça e luz sobrenatural
    Tremenda lição! Mas, lição salutar se aí aprendermos a emendar a culpa na humilde desconfiança de nossas luzes e energias, e na dócil obediência à Igreja que nos ilumina, e à Graça que nos fortifica. Evitaremos quedas futuras, como São Pedro que se tornou Doutor e Fortaleza de toda a Igreja.

PASSIO DOMINI NOSTRI IESU CHRISTI

    Não podiam os judeus executar a pena de morte, sem obter antes a ratificação da autoridade romana. Era mister recorrer a Pilatos.
    O Sinédrio sempre tolerou de mau grado essa «capitis diminutio» que lhe vedava o pleno exercício da magistratura sobre seus próprios súditos, mesmo em matéria religiosa. Demais, o juiz romano tomava de novo conhecimento da causa, e só depois sentenciava, confirmando ou reformando a decisão do tribunal judeu. Era um novo processo que se abria.
    Como, no entanto, urgia levar Jesus ao patíbulo, naquela mesma manhã conduziram-nO os sinedritas ao tribunal gentio.
    A empresa não era fácil. Cruel, cético, sibarita, não tinha Pilatos consciência tão delicada que receasse condenar à morte mais ou menos justa ou injustamente. Altivo, porém, e político, gostava de espezinhar os judeus e parecer a Tibério homem da lei. Devia, pois, o sinédrio fundamentar, com provas bastantes, qualquer acusação apresentada contra Jesus Cristo. E no julgamento a que presidiu, estas provas não haviam aparecido.

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    Saiu Pilatos ao povo, para a sessão judiciária, pois a entrada do judeu em casa de infiel vedava-lhe comer a ceia pascal, e fez a pergunta natural: - «Que acusação trazeis contra este homem?» (Jo. 18, 29).
    Colhidos de improviso, antes de concertarem uma ação ordenada diante do Procurador romano, ensaiam os sinedritas obter pura e simplesmente a ratificação de sua sentença. Retrucaram: - «Se não fora um malfeitor, não o traríamos à tua presença» (Jo. 18, 30).
    Picado com a insinuação dos judeus, devolve-lhes Pilatos o réu, não sem uma fina ironia: - «Tomai-o, então, e julgai-o segundo vossas leis» (J o. 18, 31).
    Sabia o Pro-cônsul que a autoridade judia vinha ter a ele apenas para obter uma pena capital. Não havia melhor meio de humilhar o sinédrio e obrigá-lo a reconhecer a supremacia romana.
    Pela atitude dos judeus, pretendendo impor-lhe sua decisão, e pela condição singular daquele acusado, Pilatos mostrou-se inclinado a absolver a Jesus Cristo, e à medida que o julgamento se prolongava, mais se firmava nesta convicção, lançando mão de todos os recursos de que uma vontade fraca é capaz - recursos, aliás, mesquinhos - para terminar restituindo Jesus à liberdade.
    Assim, ouvindo, naquela acusação, mais ou menos tumultuária, que Jesus era da Galiléia, tentou descarregar em outra consciência a responsabilidade que lhe perturbava a sua. Enviou o Divino Mestre a Herodes, tetrarca da Galiléia.
    Há pessoas de tal maneira endurecidas no mal, que qualquer apostolado externo, tendente a iluminar lhes a inteligência é absolutamente inútil. Herodes pertencia a este gênero de pessoas.
    Herodes era um voluptuoso. E a luxúria é como o fogo que seca e queima o coração. De maneira que na alma do lascivo não há sentimento nobre nenhum, e medram todos os instintos animais. Herodes era o escrínio de todos os vícios. Cruel e libertino, digno filho do matador dos inocentes, sua alma completamente embrutecida, fechava-se a toda tentativa de proselitismo. Por isso, diante de Herodes, Jesus Se cala.
    Não somente porque já era suprema infâmia ter que se apresentar à corte desse adúltero incestuoso, mas também porque falar nesse meio era de todo inútil. Essas pessoas não compreendem as delicadezas da graça, a alegria da virtude, a amabilidade da devoção, a excelência da castidade ou o preço da vida eterna. O vício da carne animaliza o homem tão profundamente que ele perde a percepção mais subtil da inteligência que é o entendimento das coisas do espírito. «Animalis homo non percipitea quae Dei sunt» (I Cor. 2, 14).
    Não obstante, Jesus não deixou esse palácio infame sem sua graça. Forçado a entrar na casa do pecado, fê-lo com intenção de remir aos seus moradores. Salvador do mundo, a todos veio distribuir os benefícios da vida eterna, de maneira que ninguém possa queixar-se de ter sido excluído de suas misericórdias.
    Jesus calou-Se, mas pregou com sua presença. Sua atitude serena, imperturbável, sua majestade suave, sua inocência a reluzir em seu semblante meigo, tudo era um convite a Herodes e à corte para uma reflexão sobre a pessoa que ali estava, e que não era certamente um indivíduo vulgar, um tresloucado - como por irrisão o considerou o tetrarca - mas uma pessoa digna de estudo e consideração.
    Recusou Herodes ainda esta visita da graça que a Pilatos, no entanto, segundo uma tradição, valeu-lhe a conversão.

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    A decisão de Herodes só aumentou o embaraço de Pilatos. Não absolveu Jesus, mas também não o declarou réu. Retomaram os judeus a Pilatos. Começava o Pro-cônsul a temer aquela gente, que antes calcava aos pés, e cujas vontades afogava no sangue. De abjeção em abjeção, tenta a covardia do governador romano um alvitre que lhe sugere a imaginação fértil em soluções equívocas. Recorre à flagelação, castigo bárbaro a que - com arrepios de Horácio e Juvenal - eram submetidos os escravos, muitos dos quais sucumbiam ao peso dos açoites dos soldados romanos, robustos e desalmados.
    - «Emendatur nillum dimíuam» (Lc. 23, 16)! - Eis a sentença iníqua de um juiz desfibrado. Espera Pilatos comover o povo com o espetáculo, altamente impressionante, de Jesus Cristo flagelado. Jesus, pois, foi à flagelação. Essa pena, em geral, precedia à morte de cruz. Constituía, no entanto, também uma punição à parte.
    Os verdugos munidos de azorragues - o «terrlbile flagellum» feitos de umas finas correias de couro cru, armados nas pontas de lâminas de ossos, chumbo e mesmo pontas agudas de outro metal, chamadas escorpiões, descarregavam os açoites sobre o dorso nu do miserável, encurvado sobre uma coluna baixa, a que eram sua mãos atadas, e assim não se perdia nenhum golpe. Primeiro a epiderme se entumecia, depois o flagelo rasgava sulcos no corpo da pobre vítima, o sangue corria aos borbotões, quando não saltavam postas de carne viva. - Não havia limite à violência dos algozes, senão seu cansaço ou displicência. Não se podia falar em compaixão. Esta palavra não existia no domínio do paganismo. Os campos de concentração da Alemanha e da Rússia comunista estão a atestar a crueldade a que chegam, os governos que retrocedem à barbaridade pagã.
    Com Jesus Cristo, o sofrimento foi maior do que com o comum dos condenados. De uma natureza perfeita, sua sensibilidade era muito mais delicada e a dor mais aguda. Demais, os soldados romanos não tiveram os uivos lancinantes dos escravos que, se não os excitavam à piedade, atormentavam lhe os ouvidos. Com Jesus, só o cansaço, e o cansaço de indivíduos apostados em não se deixar vencer, é que determinou o fim daquela tragédia desumana. Na revelação de Santa Brígida, todo seu corpo foi dilacerado, verificando-se a profecia de que se contaram todos os seus ossos (Sal. 21, 18).
    Pavorosa conseqüência do pecado! Não foi, entretanto, a pior provação de nosso Salvador.
    Para a flagelação, despiam o sentenciado. E o ver-se sem suas vestes perante aqueles homens boçais, sem moral e sem pudor, foi para Jesus a maior das humilhações. Predisse Davi que, nesse momento, o rubor da pureza cobriu-Lhe a sagrada Face, e do rosto derramou-se por todo o corpo. Também dessa prova a que foi submetida sua alma virgem, queixou-Se Ele ao Pai Celeste: «Conheceis, Pai, meu opróbrio e minha confusão» (Sal. 68, 20).
    Oh! que os açoites pareciam brandos a seu corpo exposto às risotas e motejos indecorosos daquela soldadesca imunda! Custa, Deus meu, custa tanto nossa Redenção, que exige do Filho imaculado da Mãe imaculada humilhação tão profunda!
    Sim, Jesus padeceu para reparar nossos pecados. Por isso, sofreu as ignomínias merecidas por todos os nossos vícios. No Pretório de Pilatos, era a nossa volúpia, mais ou menos clara, mais ou menos disfarçada que se incumbia dos flagelos da alma do Salvador. Era a vida dissoluta dos católicos que fogem à fidelidade conjugal, era o espírito mundano e sensual que domina os ambientes de gente banhada nas águas do Batismo, era a condescendência a tudo quanto em nome do uso e do costume, vai aluindo a severidade da modéstia cristã. Estes os flagelos que mais sulcavam a alma de Jesus Cristo do que os açoites dilaceravam suas puríssimas carnes.
    Convençamo-nos de que nada mais fere o coração do nosso bem-amado Redentor do que a luxúria e a moleza; como nada lhe é tão do agrado como a pureza e a castidade. Virgem, filho de Virgem, Jesus ama os corações virgens. Pelo seu Sangue Divino derramado a jorros na sua flagelação, ao menos esta prova de amor Lhe devemos, cuidando do recato, da modéstia, da guarda de nossos corações. Não os povoemos de sentimentos equívocos ou triviais, nem sirvamos de escândalo aos nossos semelhantes, irradiando em torno de nós um ambiente contrário ao espírito do Salvador.

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Fatigados, os executores deram por findo o suplício. Desataram a vítima, restituíram-Lhe suas vestes. Quando, eis que lhes surge na mente a idéia perversa de parodiar uma cena de entronização.
    Despem novamente a Jesus Cristo, substituem seu manto por um trapo de pano escarlate que Lhe fazem pender do ombro à maneira de manto real, como usavam os césares ou monarcas do Oriente, tecem uma coroa de espinhos, com os ramos que ali havia destinados ao fogo, colocam-Lhe um caniço na mão à moda de cetro, fazem nO sentar, talvez na mesma coluna que serviu à flagelação, chamam os demais da coorte, e começa a cena da irrisão. Vinham os soldados, cada um por sua vez, ajoelhavam-se diante do Senhor, como para homenageá-Lo, e ao depois, com risotas e zombarias, batiam-Lhe na cabeça com a cana e cuspiam-Lhe no rosto.
    Quando se considera que a cabeça é a parte mais sensível do corpo quando se sabe que estes espinhos, a acreditar-se em São Vicente de Lerins, eram tão duros e agudos que rompiam a sola dos sapatos, podemos calcular a atrocidade dos sofrimentos que padeceu nosso Bom Jesus na coroação de espinhos. Isso, e mais a irrisão de que foi objeto, dizem bem a humilhação, o aviltamento, de nosso Salvador, já mais um farrapo humano de que propriamente um homem. Sem beleza, sem aspecto, sem mais aparência de homem, diante dele cobrem-se as faces horrorizadas, havia predito Isaías (53, 2).
    Julgou Pilatos que poderia com esta cena comover o povo. Saiu com Jesus e apresentou-O à multidão: - «Ecce homo - eis o homem» (Jo. 19, 5). «Ecce homo» Eis o homem, na sua nudez, no estado lastimoso a que o reduziram os pecados da Humanidade. «Ecce homo» Eis o homem, o varão das dores, sopesando a maldição do gênero humano.
    «Ecce homo» Eis o homem, a vítima inocente, cujo sangue clama mais alto do que o de Abel, não exigindo vingança, mas suplicando misericórida.
    «Ecce homol» Eis o homem que assinala o novo marco na História como ponto de intersecção entre o Céu e a Terra!
    Jesus, no Pretório, é a imagem do estado da alma do homem pecador. Jesus no Pretório é a nossa salvação, é o Bom Jesus dos Perdões, pois que não resiste o Padre Eterno ao clamor desse Filho, cuja obediência o confina no aniquilamento. Jesus, no Pretório, é o Senhor e Rei daqueles que acolhem sua doutrina, seguem seus conselhos, constituem-se a nova raça. escolhida.

PASSIO DOMINI NOSTRI IESU CHRISTI

    A vítima já está preparada. Urge a imolação. Mais alguns golpes de audácia, e arrancam os judeus de Pilatos a sentença fatal: a cruz.
    Não se poderia esperar outra coisa de um espírito pusilânime. Não há desgraça maior para um povo do que ser governado por uma vontade fraca, irresoluta, sem base em princípios. O pusilânime só tem uma força, uma constância, para o mal. Dele jamais se espera o bem, porque todas as suas soluções são alógicas, encontram-se num recanto de sua mente onde há a esperança de combinar as orientações mais disparatadas. E aí não há lugar para a verdade, para o bem. A História atesta dolorosamente que todas as catástrofes tiveram sua causa num espírito poltrão.

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      Jesus, por isso, foi crucificado.
    Consumou-se o sacrifício. O véu do Templo rasgou-se de alto a baixo, profanando o santuário sacrossanto dos judeus; as rochas explodiram; os túmulos se abriram; os mortos ressuscitaram; modificaram-se os astros; o sol negou sua luz; convulsionou-se o Universo.
    Nasceu uma era nova, a era da paz entre o Céu e a Terra, Deus e os homens; a era da caridade, com poder de irmanar todos os homens numa só e mesma filiação divina. E dominando a nova humanidade, ficou o Crucifixo. No alto dos campanários, no centro dos altares, na cela do religioso, na sala da família cristã, permanece sua imagem adorável como fonte de energia, esperança dos pecadores, penhor seguro de vida eterna.
    Nós aí o temos, como no-lo figura a piedade cristã, na sua realidade histórica: o corpo dilacerado pelos açoites, os ossos à vista, as veias jorrando sangue aos borbotões, os braços estirados, as articulações rompidas com o peso do corpo e a violência do golpe que chantou a cruz no alto do Calvário, a cabeça baixa coroada de espinhos, feição meiga, olhar de amor e perdão. Aí O temos, sem as deformações hieráticas que só servem para distanciá-IO da verdade histórica, e mais ainda dos afetos de nosso coração. Assim, como O vemos, através do que narram os Evangelistas, Ele fala à nossa alma, compreendemos a sua linguagem, sentimos o seu amor, e nos resolvemos a amá-l0, com ternura, com generosidade, com ardor, com dedicação. E aceitamos toda a sua vontade, ainda quando seja para ouvir o conselho de São Pedro: «Jesus padeceu por nós, deixando-nos seu exemplo, para que sigamos suas pegadas» (1 Ped. 2, 21); ou este de São Paulo: «Carregue-mos em nossos corpos a mortificação do Senhor Jesus, para que também sua vida habite em nós» (2 Cor. 4, 10). Sim, com Jesus, já é agradável ser crucificado.